22 de jun. de 2013

Língua - Vidas em Português



“Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português.” Essas poucas palavras do escritor português José Saramago aglomeram e sintetizam muito bem conceitos importantes abordados no documentário Língua, Vidas em Português, de Victor Lopes, 2002.

Em primeiro lugar, consideremos o conceito de comunidade linguística. O português é a língua oficial de nove países (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste), falada por mais de 270 milhões de pessoas em todo o mundo, 250 milhões das quais falantes nativos. Essas comunidades espalhadas ao redor do globo estão unidas por um vínculo que transcende as barreiras geográficas, a saber, a língua portuguesa.

O escritor Mia Couto observa que, com a mestiçagem cultural, o português perdeu o dono e passou a ser gerido por mecanismos culturais, e não apenas linguísticos. Corroborando tal afirmação, a cantora portuguesa Teresa Salgueiro declara que entre Brasil e Portugal não há uma identificação total, porque se tratam de culturas muito diferentes. “Falamos a mesma língua, mas ela não é falada da mesma maneira”, ela acrescenta. Pode-se dizer que o mesmo fenômeno ocorre no âmbito dos outros países em que se fala o português, quando comparados uns com os outros. No entanto, isso não dissipa o conceito de comunidade linguística, que continua existindo incólume, desafiando as barreiras geográficas e culturais existentes.

Um segundo conceito, o de variação linguística, está estreitamente ligado às diferenças culturais manifestadas pela comunidade linguística em seus diferentes retratos. O escritor João Ubaldo Ribeiro declara que, se as línguas não mudassem, falaríamos o latim até hoje. Sim, as línguas mudam. Mas a mudança não ocorre da noite para o dia. Antes, ela pressupõe um período de variação linguística. E isso não é exclusividade do português, todas as línguas sofrem variação.

O escritor Mia Couto acrescenta que ‘o português é uma língua que aceita muito, que é capaz de se casar com o chão’ onde é falada, indicando sua permeabilidade por tonalidades e variações, que não a empobrecem, mas a embelezam. A variação linguística poderia ser classificada com fenômeno natural. Estranho seria se não houvesse variação. Do ponto de vista linguístico, não há variante inferior ou superior. Do ponto de vista social, porém, algumas variantes são estimagtizadas, ao passo que outras não, dependendo do prestígio dos falantes que as adotam. Isso nos leva ao terceiro conceito que queremos abordar, o conceito de certo e errado.

O que é certo e o que é errado na língua? Tradicionalmente, quase todo desvio da norma padrão, prescrita pela gramática normativa, é considerado como erro. Isso é o que as crianças aprendem desde as primeiras lições sobre a língua, na escola. Naturalmente, as formas que se desviam daquela norma, mas que são utilizadas por falantes cultos, tendem a ser aceitas na maioria das situações de fala. Em contrapartida, do ponto de vista linguístico, é essa tradição que parece estar errada. Para os linguistas, existem construções gramaticais e agramaticais, mas não há o certo em oposição ao errado, no uso da língua. Existem variantes de prestígio e variantes desprestigiadas. Essas variantes fazem parte do processo de transformação a que a língua é continuamente submetida.

 Tal processo de transformação é inevitável, observa José Saramago, segundo os lugares onde ela é falada. Isso nos leva ao paradoxal quarto e último conceito aqui tratado, o de uniformidade e diversidade dialetal. O escritor João Ubaldo Ribeiro aponta uma pluralidade de culturas e subculturas no Brasil que, por sua vez, resulta na diversidade no modo de falar do brasileiro, de acordo com fatores regionais, temporais, sociais e mesmo pessoais.

Essa diversidade dialetal pode ser vista também ao se observarem os falantes do português ao redor do mundo. Ao passo que a existência da diversidade dialetal não possa ser contestada, a língua preserva uma unidade estrutural, uma uniformidade em seu âmago, que a torna imediatamente reconhecível por seus falantes onde quer que a ouçam. As folhas de uma árvore podem assumir coloração diferente, variando de acordo com época do ano, exposição ao sol, vento e umidade. Mas seus galhos, tronco e raízes permanecem, uma vez atingida a maturidade. Do mesmo modo, a amadurecida língua portuguesa apresenta diversidade, tons e cores, em seus elementos menores, mas sua estrutura permanece uniforme.


Nas palavras do escritor português José Saramago, ‘as transformações não tiram a evidência de que se trata do corpo da língua portuguesa. É um corpo espalhado pelo mundo’.

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WV

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