“Quase me
apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português.” Essas
poucas palavras do escritor português José Saramago aglomeram e sintetizam
muito bem conceitos importantes abordados no documentário “Língua, Vidas em Português”, de Victor Lopes, 2002.
Em primeiro lugar,
consideremos o conceito de comunidade
linguística. O português é a língua oficial de nove países (Angola, Brasil,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e
Príncipe e Timor Leste), falada por mais de 270 milhões de pessoas em todo o
mundo, 250 milhões das quais falantes nativos. Essas comunidades espalhadas ao
redor do globo estão unidas por um vínculo que transcende as barreiras geográficas,
a saber, a língua portuguesa.
O escritor Mia
Couto observa que, com a mestiçagem cultural, o português perdeu o dono e
passou a ser gerido por mecanismos culturais, e não apenas linguísticos.
Corroborando tal afirmação, a cantora portuguesa Teresa Salgueiro declara que
entre Brasil e Portugal não há uma identificação total, porque se tratam de
culturas muito diferentes. “Falamos a mesma língua, mas ela não é falada da
mesma maneira”, ela acrescenta. Pode-se dizer que o mesmo fenômeno ocorre no
âmbito dos outros países em que se fala o português, quando comparados uns com
os outros. No entanto, isso não dissipa o conceito de comunidade linguística,
que continua existindo incólume, desafiando as barreiras geográficas e
culturais existentes.
Um segundo
conceito, o de variação linguística,
está estreitamente ligado às diferenças culturais manifestadas pela comunidade
linguística em seus diferentes retratos. O escritor João Ubaldo Ribeiro declara
que, se as línguas não mudassem, falaríamos o latim até hoje. Sim, as línguas
mudam. Mas a mudança não ocorre da noite para o dia. Antes, ela pressupõe um
período de variação linguística. E isso não é exclusividade do português, todas
as línguas sofrem variação.
O escritor Mia
Couto acrescenta que ‘o português é uma língua que aceita muito, que é capaz de
se casar com o chão’ onde é falada, indicando sua permeabilidade por
tonalidades e variações, que não a empobrecem, mas a embelezam. A variação
linguística poderia ser classificada com fenômeno natural. Estranho seria se
não houvesse variação. Do ponto de vista linguístico, não há variante inferior
ou superior. Do ponto de vista social, porém, algumas variantes são
estimagtizadas, ao passo que outras não, dependendo do prestígio dos falantes
que as adotam. Isso nos leva ao terceiro conceito que queremos abordar, o
conceito de certo e errado.
O que é certo e
o que é errado na língua? Tradicionalmente, quase todo desvio da norma padrão,
prescrita pela gramática normativa, é considerado como erro. Isso é o que as
crianças aprendem desde as primeiras lições sobre a língua, na escola.
Naturalmente, as formas que se desviam daquela norma, mas que são utilizadas
por falantes cultos, tendem a ser aceitas na maioria das situações de fala. Em
contrapartida, do ponto de vista linguístico, é essa tradição que parece estar
errada. Para os linguistas, existem construções gramaticais e agramaticais, mas
não há o certo em oposição ao errado, no uso da língua. Existem variantes de
prestígio e variantes desprestigiadas. Essas variantes fazem parte do processo
de transformação a que a língua é continuamente submetida.
Tal processo de transformação é inevitável,
observa José Saramago, segundo os lugares onde ela é falada. Isso nos leva ao paradoxal
quarto e último conceito aqui tratado, o de uniformidade
e diversidade dialetal. O escritor João Ubaldo Ribeiro aponta uma pluralidade
de culturas e subculturas no Brasil que, por sua vez, resulta na diversidade no
modo de falar do brasileiro, de acordo com fatores regionais, temporais,
sociais e mesmo pessoais.
Essa diversidade
dialetal pode ser vista também ao se observarem os falantes do português ao
redor do mundo. Ao passo que a existência da diversidade dialetal não possa ser
contestada, a língua preserva uma unidade estrutural, uma uniformidade em seu
âmago, que a torna imediatamente reconhecível por seus falantes onde quer que a
ouçam. As folhas de uma árvore podem assumir coloração diferente, variando de
acordo com época do ano, exposição ao sol, vento e umidade. Mas seus galhos,
tronco e raízes permanecem, uma vez atingida a maturidade. Do mesmo modo, a amadurecida
língua portuguesa apresenta diversidade, tons e cores, em seus elementos
menores, mas sua estrutura permanece uniforme.
Nas palavras do
escritor português José Saramago, ‘as transformações não tiram a evidência de
que se trata do corpo da língua portuguesa. É um corpo espalhado pelo mundo’.
WV
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